Augusto Melo Brandão

PEQUENA NOTA | o que você tem escutado ultimamente?

por Augusto Melo Brandão

faz um mês mais ou menos, a maria me contou que tinha acordado em uma casa sem paredes, piso ou teto. aparecia uma menina de outra cidade. tinha vindo pro rio estudar e queria um lugar pra morar. tem espaço? não tem não, tá cheio. a menina foi embora e a maria foi atrás, o pé na terra molhada de chuva. deu numa casa alta, murada, branca, vasos aqui e ali e a menina, um orixá. à época, eu tinha acabado de me mudar, cansado da espessura das paredes e da ausência de janelas. estou de frente para muitas janelas agora, e não uso cortinas. mas ainda alimento com água o meu barro, e me visto de branco às sextas, como a bárbara percebeu. semana passada, fazendo uma matéria sobre a stela, descobri que o museu bispo do rosário estava fechado, desde o encerramento da exposição das virgens em cardumes. um mestre me contou de sua época na secretaria de habitação, tornando antigos pavilhões em moradia, além do morar carioca também tem o minha casa minha vida, a juliano moreira é um lugar muito bom para projetos de habitação, tem espaço, disse. pensei na casa do bispo e da stela, e na ignorância daqueles seis minutos e meio de matéria. o rádio é uma coisa incrível. um antigo pai me contou da vez que a mãe dele deu santo só de ouvir o joãozinho da gomeia no rádio. pela idade, devia estar viva em 1938, ano da invasão extraterrestre nos EUA, sob a locução de orson welles. o parliament funkadelic tem uma música que pede pra que você deite no rádio e sinta a onda. funk not only moves, it can remove. o fotorio está com uma exposição sobre o wifi em cuba. em meio a tantos pierre vergers, a série é uma das poucas coisas valiosas da mostra. é difícil encontrar sorrisos em fotos antigas. porque sempre fazemos caretas em nossos documentos? ainda não pude ouvir maiakóvski cantando a plenos pulmões, e isso é algo possivelmente sem conserto. às vezes, tenho vontade de concertar coisas sem saber bem como. a ângela nunca conseguiu fazer uma dentadura parar dentro da boca, e consertou o santo umas três vezes. a ana, também. o lucas me diz que não dá para ignorar as máquinas, e que o ludismo foi uma nota de rodapé na história. enquanto ouço o rádio, penso em todas as máquinas que me alimentam: panela, peneira, pilão, forno de microondas, louça, barro, faca, geladeira e fogão, pia. me lembro dos vinis arranhados de anganga e converso com juçara e cadu. como escrever o que não tem livro? arranhando, eles dizem. outro dia, numa peça, um bicho doido se cortou. era uma cena de afogamento e ele se enroscava nas cadeiras, saiu uma perna e o prego bem no dedo dele. tinha uma cadeira de metal, dessas enferrujadas, da antártica, e ele fazia muitos sons com ela. as máquinas poderiam ser classificadas pelos sons que são capazes de repetir. as palavras têm essa função. sempre gostei de repetições e por isso era vidrado na programação da jb fm. algumas coisas são mais difíceis de consertar do que outras. um santo, por exemplo. o farnese de andrade consertava oratórios, e obtinha resultados estranhos. o bispo preferia desmontar tudo, antes de remontar. um som, por exemplo. uma batida sem conserto nas porteiras do corpo: ouvido, boca, nuca, pernas. para ouvir a bomba. outro dia, escutei que estava grávido. olhava para baixo, a barriga inchada de gravidez expandindo o maiô antes do mergulho. tinha acabado de me mudar.

 

PROJETOS | CARAVANA ALMANAQUE 1

por Augusto Melo Brandão

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luís de camões. 5 h. Um grupo de fanáticos anônimos se reúne em uma sala branca. Alguns chegam, outros esperam a chegada, ninguém sabe o motivo da espera. Há poucos elementos capazes de constituir memória, com exceção talvez da brancura do espaço, quebrada apenas pelo vermelho plástico dos assentos. Ou quem sabe estou apenas de ressaca e não consigo prestar muita atenção. 5h30. tiradentes. Pessoa de botas, não anônima, entra na sala. Dispõe uma série de questões de fato e de direito, e retira-se rindo, sem que possa anotar seu nome. beco das putas, 0h. (mais…)

OFICINA | Parque de versões

por Luiz Guilherme Barbosa

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Steeplechase Park por volta de 1957

Consta que Lydia Davis preparou um índice remissivo composto por uma única linha: “Cristã, não sou”. Também não pareceu ser este o caso dos poetas publicados aqui enquanto os seus poemas aconteciam subvertendo de uma só vez dois mandamentos do Decálogo: pois furtaram versos, e deram falso testemunho dos versos roubados nos poemas novos. Um dia o personagem de uma novela que líamos em sala de aula numa turma do ensino médio soltou um palavrão – Caralho! – mas a aluna que lia em voz alta para a turma corou, se recusou a ler, disse que era cristã. E então houve o que houve: o respeito à sua posição, e a crítica à relação com a linguagem – ela, como todos da turma, leu impresso no papel o palavrão, que soou silenciosamente nas cacholas de cada um e de todos, e assim ninguém deixou de ver, ler e escutar em si mesmos o esporro de um palavrão cuja voz foi roubada. Às vezes tudo se resume às possibilidades do alfabeto: com ele se produzem mandamentos, palavrões e poemas. Acontece que (mais…)