Josely Vianna Baptista é poeta e tradutora, publicou Ar, Corpografia, A concha das mil coisas maravilhosas do velho caramujo, Roça barroca, e é
Bonytos de corpo
Prêmio para poetas que têm a forma, os procedimentos e as máquinas do poema como parte fundamental de suas obras
1. Josely, você tem aqueles primeiros poemas “aerados”; também já foi identificada como poeta neobarroca; e, em publicação recente, o Roça barroca, andou buscando a interseção entre as formas da tradução e da poesia. Você acha que a sua poesia tem um projeto que unifica todos os outros?
JVB: Sim. Além do exercício da poesia, o trabalho de tradução de peças mitopoéticas ameríndias e de obras literárias hispanoamericanas, que desenvolvo há 30 anos, me mantém próxima de importantes universos culturais iberoameríndios. E minha formação em Literatura Espanhola e Hispano-americana propiciou, também desde o início, um convívio com o Barroco clássico espanhol, presente desde sempre nas diversas sínteses dos “barrocos” latino-americanos. Agora estou pesquisando o barroco ameríndio, e vou retomar a nunca abandonada aeração dos poemas (que, diga-se de passagem, não tem a ver apenas com poesia visual). Meu trabalho vem sendo construído de olho em contextos culturais plurais e excêntricos, e se insere, nesse sentido, numa “poética mestiça”, como diz Cecília Vicuña em “The Oxford Book of Latin American Poetry”. Lido livremente com o hibridismo sígnico – aliás, presente em nossa literatura desde o início, tendo comparecido aos banquetes modernistas e à mesa de seus sucessores, e encontrado, também, na própria transposição do barroco europeu (nos séculos XVI e XVII) à realidade tropical. Mas é movida por um impulso “hiper-barroco” multiétnico e pluritemporal que busco os entrecruzamentos do mito, das narrativas verbais e visuais, da memória, das línguas etc. E nessa coexistência de contradições que conformam a cultura brasileira, acho que a tela rútila das pálpebras e clarões arcaicos podem se conjugar sem fôrmas de estilo que sejam camisas de força ou algo parecido.
2. Você é também uma tradutora impressionante. Você acha que a tradução é uma “forma” que você experimenta? Nesse sentido, você acha que a Associação Brasileira de Tradutores deveria suingar e fazer um prêmio com esse naipe?
JVB: Toda tradução literária deve ter o cuidado com a “forma” no centro de sua prática, né? Não sei se a Abrates tem ou não algum prêmio para tradutores literários, estou por fora. Mas acho que mesmo as instituições que tradicionalmente já concedem prêmios a tradutores, como a Câmara Brasileira do Livro e a Biblioteca Nacional, deveriam ampliar sua esfera de ação e instituir um programa de bolsas de tradução (principalmente) e de prêmios de “tradução para o português de obras ameríndias” e de “tradução para línguas ameríndias de obras de autores brasileiros”. Pois ainda que, especialmente desde os anos 90, como diz Betty Mindlin em seu texto sobre “Roça barroca”, “os índios escrevam, sejam escritores e professores bilíngües”, há uma lacuna que seguirá intransponível se não for feito um esforço poético-tradutório decisivo nesse sentido. É preciso construir essa “ponte”, e para isso é importante que haja um suporte adequado de instituições que deveriam prezar pela inclusão, na “literatura brasileira”, das oraturas, das manifestações de tradição oral (e, hoje, também escrita) em línguas ameríndias do Brasil. Acho que esse seria um primeiro passo para efetivar, aos poucos, essa ponte de mão dupla. No caso das oraturas ameríndias, os poetas-tradutores teriam de se aliar aos índios e aos valorosos antropólogos, linguistas e exegetas das culturas autóctones do país, aportando seu empenho e talento poético para que manifestações até hoje praticamente circunscritas ao âmbito etnográfico possam ser conhecidas também como peças de arte verbal. E ainda, com esse gesto inovador, seria interessantíssimo instituir bolsas de criação para estimular os criadores ameríndios a escrever em suas próprias línguas. Uma corriente alterna. Já pensou que maravilha um país com uma literatura/oratura diversamente rica a esse ponto? Quantas são as línguas vivas hoje em dia só no Brasil? E quantas dessas línguas nós, tradutores brasileiros em atividade, conseguimos sequer nomear? Essa é minha proposta para a Abrates e para os outros órgãos interessados em salvar, do “ossuário do esquecimento” (palavras de Roa Bastos), esses tesouros todos. Torço para que, mesmo num país como o nosso, que se encandeia principalmente com o outro que é seu mesmo (ou seja, a cultura ocidental), ainda seja possível um movimento firme de abertura para as poéticas dos índios brasileiros, e de intercâmbios extensivos também a outras línguas ameríndias de países vizinhos. Bem, desculpe a respostona, mas foi em prol da boa e velha questão da “forma”, das formas ancestrais do Ayvu Rapyta, da Ilíada, do Popol Vuh, da Odisseia – enfim, da “madrugada das formas poéticas” onde tudo começou.