Luiz Guilherme Barbosa

OFICINA | Parque de versões

por Luiz Guilherme Barbosa

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Steeplechase Park por volta de 1957

Consta que Lydia Davis preparou um índice remissivo composto por uma única linha: “Cristã, não sou”. Também não pareceu ser este o caso dos poetas publicados aqui enquanto os seus poemas aconteciam subvertendo de uma só vez dois mandamentos do Decálogo: pois furtaram versos, e deram falso testemunho dos versos roubados nos poemas novos. Um dia o personagem de uma novela que líamos em sala de aula numa turma do ensino médio soltou um palavrão – Caralho! – mas a aluna que lia em voz alta para a turma corou, se recusou a ler, disse que era cristã. E então houve o que houve: o respeito à sua posição, e a crítica à relação com a linguagem – ela, como todos da turma, leu impresso no papel o palavrão, que soou silenciosamente nas cacholas de cada um e de todos, e assim ninguém deixou de ver, ler e escutar em si mesmos o esporro de um palavrão cuja voz foi roubada. Às vezes tudo se resume às possibilidades do alfabeto: com ele se produzem mandamentos, palavrões e poemas. Acontece que (mais…)

OFICINA | Entrevista com Júlia de Carvalho Hansen

por Luiz Guilherme Barbosa

LEITURAS

Não apenas os poemas de Júlia de Carvalho Hansen ensaiam a proximidade com aquilo que, à falta de palavra mais precisa, chamamos de natureza, mas, com Seiva veneno ou fruto, não tem jeito, a sua voz arrasta coisas grandes, lê-se assim: “Minha vida foi parar em outra galáxia / e escrevo para resgatá-la”, ou “Procuro no vento / a consciência das plantas”, ou “Criar raízes é o mesmo que fazer órbitas”. O tamanho pequeno das letras dos poemas na edição de capa azul, poemas sem título todos, editados pela Chão da Feira, sugere a dimensão da letra. A leitura, orbitando o poema a cada verso no vaivém do olhar sobre a página, termina por se deparar com um último poema que logo começa: “Da palavra sair / habitar outros mundos”. Parece que as letras na página são pequenas na medida em que, quanto mais pequenas, mais propulsoras para fora da palavra. Por isso parece que esses poemas de Seiva veneno ou fruto convocam.

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PEQUENA CRÍTICA | O CANTO DO OLHO

por Luiz Guilherme Barbosa

Aquilo que foi lido (por pele, pensamento, olho, escuta, olfato, língua, esquecimento) produz talvez espaço, uma paisagem, para quem leia. Espaço, por exemplo, terapêutico. Como os que lemos (cômodos vazios cheios de cores) em telas de Emygdio de Barros (1895-1986), pintor do Engenho de Dentro. Representam salas, janelas e corredores pintados no Centro Psiquiátrico Nacional. Também flores e gatos, os jardins pintados no Hospital. De azul a azul de alto a baixo, a tela de 1973[1] passeia pelas folhas de uma árvore que, entre constituir e fragmentar o espaço, aproxima-se de uma pessoa sentada de costas num banco de cimento, próximo à raiz, no chão tingido também com a matéria luminosa do sol. Próximo às “raízes da estrutura psíquica”: num dos textos dedicados às telas do pintor, Mário Pedrosa assim formula a perturbação de uma tela como as de Emygdio que pesquisam “um novo modo de sentir”.[2] Trocar olhares com a paisagem em volta, ainda que paisagem mínima ou mínimo olhar, e colori-la, ou melhor, conferir paisagem à cor, estar em dúvida entre a cor e a paisagem e, assim, desenhar uma linha que se torne fundo, ora volte a ser contorno – a tenuidade dessa pintura parece que surgiu de esse pintor ter sido, num instante, a paisagem em que recaiu algum olhar.

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